Atualmente, em qualquer grande cidade do planeta, o espaço urbano é fragmentado, ou seja, se estrutura como um quebra-cabeça em que as peças fazem parte de um todo, mas cada uma tem sua própria identidade. As grandes cidades se dividem em centros comerciais, financeiros, bairros industriais, residenciais, bairros com grande concentração de casas noturnas e restaurantes, etc. Elas se estruturam de forma polinucleada, ou seja, cada zona da cidade possui seu próprio centro e rua principal, que polarizam o comércio e os serviços.
Essa fragmentação, quase sempre associada a um intenso crescimento urbano, faz com que os cidadãos não vivam a cidade por inteiro, mas apenas os fragmentos que fazem parte do seu dia-a-dia e caracterizam o seu lugar, ou seja, o seu local de moradia, de trabalho, de estudo e de lazer (os locais por onde circulam). Leia, no texto a seguir, como a segregação se materializa nas condições de moradia.
Interesses e conflitos presentes no espaço urbano
Ermínia Maricato1
Tanto as autoridades governamentais ligadas à política de habitação quanto os representantes do capital imobiliário referem-se frequentemente à questão da habitação em termos numéricos de déficits ou projeções de unidades isoladas a serem construídas. Essa forma simplista de tratar o tema ignora que a habitação urbana vai além dos números e das unidades. Ela deve estar conectada às redes de infra-estrutura (água, esgoto, energia elétrica, drenagem pluvial, pavimentação) e ter o apoio dos serviços urbanos (transporte coletivo, coleta de lixo, educação, saúde, abastecimento, etc.). Se na zona rural algumas dessas atividades podem ser resolvidas individualmente, na cidade sua inexistência pode inviabilizar a função da moradia ou acarretar danos sociais e ambientais, além de exigir sacrifícios por parte dos moradores. É o que acontece na periferia ilegal e sem urbanização. As distâncias a serem percorridas pelos transportes públicos são imensas, absorvendo para isso uma parte fundamental de cada dia do trabalhador, morador da periferia.
O acesso à moradia está ligado ao seu preço, que, por sua vez, depende de sua localização na cidade.
Quando alguém compra uma casa, está comprando também as oportunidades de acesso aos serviços coletivos, equipamentos e infra-estrutura. Está comprando a localização da moradia, além do imóvel propriamente dito. Edifícios residenciais de mesma área, mesmos materiais de construção, mesmos acabamentos têm preços diferentes, dependendo de onde se situam: num bairro com transporte abundante, praças, escolas, arborização, iluminação, etc., ou na periferia, que reúne carências múltiplas e onde o número de homicídios é mais alto, pois o serviço da polícia se faz de forma distinta na cidade, priorizando a defesa dos patrimónios pessoais. Até mesmo o tipo de vizinhança interfere na valorização de imóveis e terrenos.
Numerosos estudos sobre o urbano se detiveram na base desta questão: a propriedade que tem um imóvel de valorizar-se a partir das transformações que são efetuadas em seu entorno ou vizinhança. A legislação urbana, ou as normas que regulam a forma como o solo pode ser ocupado, também influi no seu preço. Um terreno de 1000 m2, que pela lei do zoneamento permite construir edifícios com área equivalente a quatro vezes a sua área, ou seja, 4 000 m2, vale mais do que outro em que a lei permite [construir] apenas a área do terreno, ou 1 000 m2. Outros fatores também influem na "geração" da renda imobiliária, mas estes são sem dúvida os mais importantes.
A valorização imobiliária, ou seja, a propriedade que têm os imóveis de se valorizarem, está na base da segregação espacial e da carência habitacional. Em torno dela, ou seja, em torno da apropriação da renda imobiliária, é travada uma surda luta no contexto urbano. Fazendo um raciocínio muito esquemático, de um lado estão os usuários da cidade, os trabalhadores, aqueles que querem da cidade condições para tocar a vida: moradia, transporte, lazer, vida comunitária, etc. Esses vêem a cidade como valor de uso. Do outro lado estão aqueles para quem a cidade é fonte de lucro, mercadoria, objeto de extração de ganhos. Esses encaram a cidade como valor de troca. A luta que se trava na cidade pela apropriação da renda imobiliária é a própria expressão da luta de classes em torno do espaço construído.
Nenhum comentário:
Postar um comentário